Memórias Emprestadas

Da última vez que estive na casa da minha mãe, em Petrópolis, reorganizei o baú de fotos da família. Ela não tem muita paciência para essas coisas. Comprei diversos álbuns e organizei fotos que datavam da época dos meus bisavós. Encontrei até mesmo, pasmem, fotos de uma trisavó. Para cada foto colocada no álbum fiz uma pequena legenda explicando quem estava ali, onde foi tirada, data aproximada, tudo com base nas memórias da minha mãe e nas informações contidas no verso de algumas fotografias.

Aquelas singelas fotos contam também sobre os primeiros tempos da família no interior do Brasil, cujos descendentes foram aos poucos migrando para a cidade e assumindo profissões urbanas: servidores públicos, comerciantes, profissionais liberais.

Algumas fotos, de tão antigas, escapam à memória mesmo da minha mãe.

– Quem são esses aqui, mãe?

– Não faço a mínima ideia – o “não faço a mínima ideia da minha mãe é idêntico ao do meu filho, que vive a mais de mil quilômetros de distância e visita a avó poucas vezes por ano. A linguagem está nos genes, desconfio eu.

Diversas das fotos de “desconhecidos” são endereçadas à minha bisavó Bibinha. Italiana, diz a lenda familiar que ficou viúva ainda jovem, mas teria se recusado à pressão da família para retornar à Itália. Continuou a cuidar das fazendinhas que meu bisavô tinha no interior do Estado do Rio de Janeiro. Também contam que eles tinham uma boa condição de vida e investiram todas as economias e heranças no Brasil. Mais tarde as terras foram vendidas e o que restou foi dividido entre um grande número de irmãos, dos quais minha avó era a caçula. Herança da qual minha avó nunca viu um centavo: era menor de idade à época da partilha e o banco onde o seu quinhão foi depositado faliu.

Aprendo nos bilhetes no verso das fotos que Bibinha parecia muito amada. Amiga, madrinha de muitos, mui estimada, era regalada com fotos de crianças, afilhados, mulheres, famílias, a quem apadrinhou ou ajudou, segundo conta a escrita amarela pelo tempo. Uma pequena delicadeza que me encanta. Uma forma de lembrança que me é totalmente distante desse meu mundo de selfies, likes e fotos compartilhadas até demais.  Eu me senti um pouco intrusa espiando aquelas fotos, lendo bilhetes que não foram endereçados a mim. Mas é por meio dessas memórias emprestadas, das fotos e letras de desconhecidos, que conheci a minha a bisavó Bibinha. Ela me também é muito querida e, quando eu for apenas uma lembrança, que eu seja uma lembrança carinhosa.

Acorda, Pedrinho

A mãe passa os dois primeiros anos tentando fazer a criança dormir a qualquer custo. E o resto da vida tentando acordá-la para ir à aula, à consulta do dentista, à sessão de fonoaudiologia.
E o menino inventou de fazer aulas de futebol como os amigos aos sábados pela manhã. Às nove horas da madrugada. Demora para acordar, reclama o resto do dia se eu não o acordo e perde a bendita aula.


Tomei uma medida extrema: “Olha só, se você quiser ir à aula de futebol amanhã, eu NÃO vou acordá-lo. Você tem que acordar SOZINHO e me acordar. Eu NÃO vou me mexer até você acordar”.


Primeiro sábado do experimento. Às sete horas da manhã a Alexa toca no volume máximo: “A-cor-da Pedrinho, que hoje tem campeonato (…)”. A casa treme e antes que eu tenha tempo de me assustar ou me mexer, uma criança grita no meu ouvido: “ESTÁ NA HORA, MAMÃE”. Imagina se eu o acordasse assim nos dias de aula de reforço. Karma is a bitch.


Segundo sábado do experimento. Menino foi mais gentil. Acordou ANTES da Alexa e a desligou. Vestiu o uniforme do Saint Germain, preparou e tomou o próprio café da manhã. Algo inédito, o café da manhã é outro rito de enrolação, mas surpreendentemente aprendeu até a abrir a tampa do pote de iogurte. Às sete em ponto sou acordada com um beijinho na bochecha e um sussurro: “Mamãe, aula de futebol”. Ainda não foi hoje que ele perdeu a hora e consegui dormir até mais tarde.

Feliz 2023

Amor. Sonho. Paz. Esperança. Felicidade.

Foi longa a noite. As palavras resgatadas aquecem o coração.

Foto por Pixabay em Pexels.com

Bem-vindo, 2023

Gosto do Ano Novo. Uma celebração que se estende contente ao longo do dia. Por 24 horas, sempre é Ano Novo em algum canto. Acordo um pouco tarde e o meu amor avisa: já é Ano Novo na Austrália! E a gente se encanta com os fogos na baía de Sydney e faz planos de um dia ir até lá, mesmo fazendo anos que não colocamos o pezinho nem mesmo na areia de Copacabana, que fica logo ali. Descubro que tem gente que gosta tanto de Ano Novo que há um voo concorrido que decola de Seul nas primeiras horas de 2023 e pousa em São Francisco no finalzinho de 2022, a tempo de celebrar mais uma vez. Brindamos em Brasília a chegado no novo ano, um olho nos fogos de Copacabana em 4k, outro nos festejos em Águas Claras, mais modestos, mas que conseguimos avistar da janela de casa. A música, a conversa e os brindes se estendem mais agradáveis. Quem é de dormir cedo quer se recolher, as crianças felizes com a rara noite em que não há hora para se deitar querem ver o dia nascer. Daqui a pouco é Ano Novo em Nova Iorque, com muito frio, globo de luz e música do Frank Sinatra. Mais um pouco o Ano Novo chega ao México e logo é Ano Novo em todo lugar. Feliz 2023.

Foto por Jonathan Petersson em Pexels.com

E Petrópolis mais uma vez morre um pouco pelas chuvas

Quando passeio pelas ruas de Petrópolis muitas vezes sou tomada por uma sensação de finitude. Quem sou eu, diante da natureza exuberante da mata atlântica, ou dos belíssimos prédios e monumentos centenários, recheados de lendas e histórias? Apenas uma personagem anônima, como milhares de outras, que viveu por ali e um dia desaparecerá sem deixar grandes marcas – a essa altura da vida já está bem estabelecido que não estou destinada a feitos memoráveis.

Aquela cidade, a minha cidade, está destinada a ser a cidade de tantos outros, que caminharão pelas mesmas ruas e habitarão as mesmas casas por anos e séculos a perder de vista. É uma sensação bem diferente da que experimento vivendo há vinte anos em Brasília, apenas dezoito anos mais velha do que eu, onde vejo a cidade crescer e se transformar diante dos meus olhos, na qual bairros inteiros se erguem em meio à poeira em questão de meses e onde planto mudas de ipês nos endereços por onde passei, deixando minhas pequenas marcas, que florescem ainda jovens. Uma cidade parece parada no tempo, a outra se reinventa a todo tempo. As duas igualmente amadas.

Há pouco mais de uma semana Petrópolis foi arrasada. Eu não estava preparada para ver isso. Colégios, praças, pontes históricas e casas centenárias construídas em locais supostamente seguros também foram devastados. Desapareceu a biblioteca onde eu estudava, a praça onde brinquei, paisagens que me eram familiares. É uma dor acompanhada de culpa. Afinal, eu tenho “sorte”: minha mãe, meu irmão e meus tios estão bem, enquanto não muito longe da nossa casa o cenário era de pais cavando a lama em busca de seus filhos, avós chorando pelos seus netos e grávidas soterradas pela lama.

A tragédia escancara o cenário desolador produzido pela desigualdade. Para alguns, habitando áreas seguras, os prejuízos foram apenas patrimoniais. Nas áreas de risco, mais uma vez, morre-se por negligência e pela falta de políticas de planejamento urbano. Um jornal dá conta que, com um intervalo de trinta anos, neta e avó foram vitimadas pela mesma tragédia: soterradas depois de previsíveis chuvas. O Brasil das redes sociais subitamente se insurge contra o laudêmio, o chamado “imposto do príncipe”, um dinheiro que até hoje é devido aos herdeiros do último imperador a cada vez que se negocia um imóvel. Dispenso as lições sobre direito civil, eu sei uma ou duas coisas sobre direito, afinal é uma carreira jurídica que paga minhas contas. O debate em torno do laudêmio e a calamidade das chuvas em Petrópolis são um estudo de caso pronto para qualquer aula de introdução ao direito em que se debata os limites entre direito, justiça e moral, naquele tipo de debate que se sabe infinito. Há um elemento comum entre a avó e a neta que morreram soterradas com um intervalo de décadas, e os descendentes do imperador: no Brasil tanto a miséria quanto a riqueza são herdados, e somos enganados direitinho com o discurso da meritocracia.

Os monumentos e prédios tombados provavelmente serão restaurados. Mas parte da cidade morreu. Permanecerá a lembrança nos registros fotográficos, a recordação dolorosa no coração de seus antigos moradores, e a dor imensurável da perda. Feridas que nunca cicatrizarão. Dizem que foi a maior tragédia natural desde o início da série histórica. No meu coração fica a angústia de que é mais um sinal dos danos irreversíveis causados pelo aquecimento global. Ninguém está seguro e não estamos preparados para lidar com isso.  Passado, presente e futuro foram levados pela força das águas.

Notas de (mais uma) viagem a Petrópolis

Na BR-040, que liga Brasília ao Rio de Janeiro, encontramos pouquíssimo movimento. Na maior parte do trecho até Sete Lagoas havia apenas o nosso carro e os caminhões que escoam a safra. Os grãos de soja caem pelo caminho e quando o trânsito se aquieta os pássaros correm para se alimentar. Encontramos um se número de tucanos, quero-queros, dois casais de araras e outras tantas aves que não sei identificar.

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Inverno é época das árvores floridas. Às margens da estrada, vejo ipês rosas, alguns amarelos, ainda tímidos, e árvores das mais variadas cores. As matas até Belo Horizonte estão cheias de flores roxas, e eu ignoro qual é a espécie. Eu me recordo da minha avó, que conhecia todas as árvores floridas. E nos passeios de carro com a família nunca se cansava de comentar sobre a beleza das quaresmeiras, ipês ou qualquer que fosse a florada da época. Vou para Petrópolis, passar férias na casa que um dia foi da minha avó, e onde vivi minha infância. Vou rever tudo que me é familiar, o que só faz aumentar a saudade que sinto da minha avó.

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Ao chegar a Três Marias atravessamos a ponte que corta o Rio São Francisco. Eu já cruzei o rio São Francisco inúmeras vezes. Visitei a sua foz em Piaçabuçu, em um dos passeios mais bonitos que fiz na vida. Tem algo no rio São Francisco que me emociona e faz a garganta apertar, assim, sem qualquer explicação.

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Três Marias me faz lembrar do meu pai e meu irmão, que sempre paravam debaixo da ponte para almoçar peixe frito. Tradições de família. O lago é bonito. Mas nós não paramos. Seguimos até a pernoite em Sete Lagoas. O menino acha o máximo essa parada em um hotel à beira da estrada, ao lado de um shopping com MacDonald’s e sorvetes do Chiquinho. Novas tradições familiares.

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Levei comigo dois livros que, com o dia todo consumido em programas familiares, permaneceram quase intocados. O menino se encantou com o Limonov do Emmanuel Carrére, em uma edição linda da Tag, que brinca com o nome e traz a caixa e capa dura em tons cítricos. “Li-mo-nov”, ele lê certinho, mas devagar, com aquele tom característicos dos recém-alfabetizados. Eu comemoro a leitura correta de uma palavra estranha, sem qualquer ilustração ou contexto para ajudar, enquanto ele me olha intrigado: que diabos é Limonov? Difícil dizer se gostei mais do livro ou do menino lendo o título. Limonov se torna inesquecível pelo título soletrado na voz de uma criança de sete anos. Na hora de fazer as malas, quase esquecido, o menino aponta para o volume e me pergunta: “O Limonov volta para Brasília?” Sim, o Limonov volta para Brasília. Ele folheia o livro curioso e me pede que conte a história do Limonov. Afinal, tudo o que eu faço ou leio desperta a curiosidade dele. Seguro o riso e rezo para que ele se esqueça do Limonov por uns tempos.

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A tia Cláudia me presenteia com um móbile de tsurus, e uns outros tantos soltos, que encantam o menino. Ele acomoda os pássaros em barquinhos também feitos de origami. Como era mesmo a lenda? Mil tsurus e um pedido atendido pelos deuses?

Hoje é São João

Hoje é dia São João. O segundo São João sem festa. Dentre as muitas coisas que Brasília me trouxe, estavam as festas juninas: no trabalho, no clube Nipo, na OAB, nas igrejas das quadras, nas escolas… Alegre e deliciosa tradição com raízes nas festas nordestinas. Lá em Petrópolis a festa junina era pouco celebrada. A maior lembrança que tenho é das festas da escola, com as danças ensaiadas por dias a fio, barraquinhas e brincadeiras.

Também é aniversário do Tio João. Quando pequena, eu achava engraçado ter um tio João nascido no dia de São João. Também pensava que era estranho que todos se referissem a ele como o irmão mais novo do meu pai. Como alguém que parecia tão adulto podia ser chamado de “caçula”? Não conseguia enxergar os treze anos que supostamente separavam o nascimento dos dois. O tio João, sempre tão adulto, ponderado e paciente, não me parecia ter nenhuma das características esperadas em ‘’um irmão mais novo”. A semelhança física com meu pai é tão grande que chega a doer. Mas os temperamentos não poderiam ser mais diferentes.

Meu filho não conheceu o avô. Mas acertou a mega-sena dos tios. O tio-vovô tem uma caixa enorme de legos e um fusquinha branco que faz o maior sucesso. Daqui a pouco a gente vai ligar para o tio João. E quando desligar sei que o menino vai choramingar de saudades. E, em silêncio, enquanto o consolo, eu também. Não sou boa com ligações telefônicas, e menos ainda com videochamadas. Mas elas são o que nos resta. Hoje não tem dança, fogueira, festa, nem ao menos um copinho de quentão. Mas é aniversário do tio João. E a gente celebra que até aqui, felizmente estamos todos bem… Isolados, mais tristes, mais solitários, mas vivos.  

Foto por Peter Fazekas em Pexels.com

Outra vez

E de repente, não mais que de repente, outro ano se passou e os primeiros ipês roxos estão floridos.

Em meio à aridez interminável, eles encantam nossos olhos e aquecem nossos corações. A vida que floresce, apesar de.

Voltaram as flores. Mas ainda não voltaram os abraços, os beijos, os brindes, ou as tardes de riso frouxo.

Enquanto isso, a gente busca abrigo à sombra dos ipês. O menino joga bola, ainda sozinho. O pai escuta música. A mãe lê um livro. A gente ri, conta história e sonha. Esperamos os ipês amarelos, os reencontros, os ipês brancos, as brincadeiras de roda, a vida renascer.  

Ecos do Passado

O teto sobre a minha cabeça é um tantinho barulhento. Os sons são como ecos do passado. Normalmente os vizinhos reclamam dos barulhos no apartamento de cima. Mas ao nosso redor está tudo tão quieto que eu até gosto do barulho.

Durante muito tempo morei neste prédio e não havia ruídos. Fui uma das primeiras a chegar. Fiz a reforma, arranquei o piso e derrubei algumas paredes com tranquilidade. Eles chegaram depois, bem depois e seguiram o mesmo roteiro clássico. Felizmente fizeram suas quebradeiras na época em que minha criança ia para a escola e no trabalho a minha presença física era requerida das nove às seis. Em um tempo quando a gente passava a maior parte do dia fora de casa.

Nas noites frias de inverno eu desligo o ar-condicionado e deixo a janela do quarto de dormir aberta. Gosto dos barulhos longínquos dos carros cortando a madrugada. Eles me lembram o barulho do mar. Não tem nada a ver, eu sei. Depois que o meu pequeno nasceu desenvolvi ouvidos supersônicos capazes de detectar choros de bebê a quilômetros de distância. Há não muito tempo, o choro era estava no andar de cima. Acordei algumas vezes com aquele choro miúdo, lembrei que não tenho mais bebê em casa, sorri, virei para o outro lado e voltei a dormir. Agora o choro sumiu e escuto passos e pulos pela casa. Como criaturas tão pequenas conseguem pisar tão pesado? E por que diabos elas aprendem a correr antes de andar?

Ele, ou ela, acorda cedo. Escuto os passos saindo do quarto de criança e percorrendo o corredor até o meio da suíte master. Então, o silêncio. Eu sei bem o que acontece nessa hora. Um bebê que recém aprendeu a andar pula na cama dos pais, sem rede de proteção, com o maior sorriso do mundo. Os pais acordam entre o susto e o mau-humor, mas não resistem àquela criaturinha fofa. Por um minuto sinto saudades. Lembro que o meu pequeno não é mais um bebê. Sei que ele despertou quando escuto o barulho da tv ligada nos desenhos animados. Eu me levanto para preparar o café e penso em esconder o controle-remoto na minha mesa de cabeceira.  Caminho até a sala ainda sonolenta e ele me cumprimenta com o maior sorriso do mundo: “Bom dia, flor do dia”.

Foto por Tatiana Syrikova em Pexels.com

Mais uma chance?

Alguém ainda escreve em blogs? Talvez eu dê mais uma chance a este aqui. Procurando por um lugar alternativo, que não seja uma página em rede social, onde às vezes acho que acabo me policiando mais do que gostaria para não atrair polêmicas inúteis.

Foto por Dom J em Pexels.com